2007-02-16

Um Blues Nem Sempre é Triste

O texto que se segue requer algumas observações prévias. Escrevi-o na segunda metade de 2005, tendo como princípio a correspondência trocada entre dois portugueses que vivem afastados: um em Berlim outro em Nova Orleães. Depois de ter escrito algumas cartas, comecei a ficar sem ideias, sem saber como arranjar um final, se é que tinha de ter algum final... Depois acontece o inesperado. Em Nova Orleães, o furacão Katrina provoca um terrível drama humano. Infelizmente, tive matéria para terminar a correspondência... As três últimas cartas foram já escritas depois do furacão.


Nova Orleães, 5 de Julho de 2005

Uma vez disseste-me que gostavas de escrever canções de amor em noites quentes. Hoje está um calor de inferno. Gostava de ser como tu e transformar o calor em música. Que desperdício o inferno quando estás longe. Gostava de te ouvir dizer que aí também transpiras e que sem ar condicionado te custa dormir. E que te sentas em frente a um piano desafinado e fazes um blues. Comigo a música acontece quando ao regressar a casa, ao fim da tarde, vejo o calor a levantar-se das pedras e todo o ar cheira a queimado. São os fins de tarde em que, na minha cabeça, sou um negro sem correntes, e corro pelos campos de algodão que pus a arder gritando “liberdade”, num tom ritmado de esperança e dor. Sei que do outro lado está o rio, mas a minha liberdade não tem objectivos. E desapareço nas chamas ao som dos cânticos da sanzala, que ouço ao longe. Chego sempre a casa com uma sensação inútil de desejo. Inútil porque não o transformo em som, porque as palavras – estas palavras – são poucas e desajeitadas para dizê-lo. E porque penso que, se calhar, nem sequer vais ler esta carta.

Um abraço,

A


Berlim, 13 de Julho de 2005

Só existes tu nas noites de canções de amor que não chego a escrever. E, por consequência só existo eu. Não importa se há quem se julgue mais privilegiado, mais completo. Poder dizer-te que é bom ter música na ponta dos dedos sabe-me a um milagre. Gosto das tuas palavras ajeitadas e reconcilio-me sempre com os teus abraços. Dizes que gostavas que as notas te saíssem harmoniosamente. E eu respondo-te que gostava de ser esse negro a correr pelos campos de algodão. Mas tenho de me resignar a fazer a banda sonora, apenas. E o pior é que as canções de amor tardam. Aqui o calor não é muito e as florestas estão demasiado longe para se deixarem ouvir morrer. Há muito silêncio por estas paragens. Tanto que custa interromper. O meu piano continua afinado, à espera de melhores dias. A liberdade é também paciência.

Um abraço,

B


Nova Orleães, 18 de Julho de 2005

Os teus abraços são também liberdade. Se me esperares com a porta da sanzala aberta, juro que não desisto até te levar comigo para a beira do rio. Deixamos o coro e as suas lamentações para trás. Já não me importaria com a música e a sua espiritualidade se apenas precisarmos dos nossos braços entrelaçados para chegarmos a um princípio mais fresco. Nunca pensei que a música na ponta dos dedos te acorrentasse. Mas agora que o sei, peço-te desculpa pelo meu lamento. Podemos viver sem blues, se quiseres. Ao fim ao cabo, é melhor deixar a tristeza nos campos de algodão.

Um abraço,

A


Berlim, 25 de Julho de 2005

Compreendo, pelas tuas palavras de compaixão, que ignoras que não existem destinos forçados. Os abolicionistas não fizeram mais do que estar a meio do caminho dos libertados. Vou continuar no meu quarto de derrota, onde não podes chegar, apenas porque não sabes como ou porque não te soube eu mostrar o caminho. Mas não te preocupes. Um blues nem sempre é triste. E é sempre possível quebrar a corrente do medo. E perceber, finalmente, que não é a harmonia dos sons mas a sua intensidade que nos comove.

Um abraço,

B


Nova Orleães, 30 de Julho de 2005

Não é a harmonia nem a intensidade dos sons que me comove, mas o seu desencontro. Acreditas mesmo num destino antes de ti, eu não. Mas admito: a vontade de querer forçar o destino é imprudente e megalómana. Nunca acreditei noutras entidades que não o indivíduo. No meu mundo não existem pares, nem grupos, nem famílias ou agregações. Então porquê a minha necessidade de partilha, de querer libertar-me contigo? Esta cidade é estranha. Vivo o seu quotidiano de uma forma apaixonada, mas não te consigo falar dele. Construo imagens de cenários possíveis e nestes, trabalho a minha imaginação e o que me liga a ti. Os arrebatamentos surgem em estados de espírito assim. Quando leio as tuas cartas é quase sempre de noite e já passei pelos bares de sempre onde o embaraço da descontracção alheia me faz fugir. Começo a achar que a distância propicia o controlo. Este será, talvez, uma arma de defesa. Ou de arremesso. Como o amor.

Saudades,

A


Berlim, 5 de Agosto de 2005

Talvez os apátridas se procurem em todos os gestos quotidianos. Lembro-me que no passado Abril, corri todas as floristas para comprar um cravo. Não encontrei. Não sei como se diz cravo em alemão. Também procuraste um, no passado Abril?

Abraço,

B


Nova Orleães, 12 de Agosto de 2005

Hoje tropecei num mendigo negro que pedia sentado à porta de um café. Caí e praguejei em português. Ele olhou para mim e ajudou-me a levantar. Tirei um dólar do bolso para lhe dar, mas ele abanou a cabeça numa expressão de cansaço e virou costas. Senti-me frágil e inútil como se tivesse deixado de compreender tudo, ou como se tivesse começado a compreender tudo. Não sei de que lado estou, se tenho sorte ou azar, se pertenço ao grupo dos privilegiados ou ao dos que nada têm. Por isso, estou à margem de tudo, entre lucidez reveladora e a dúvida insolúvel. Entre o céu e o inferno, o melhor sítio para se estar, como diz um blues antigo. Não estava assim em Abril passado, quando pedi à minha vizinha do lado que me desse um dos cravos vermelhos que cultiva no canteiro em frente a casa. Perguntou-me para que o queria e eu falei-lhe da revolução. Disse-me que o seu país também precisava rápido de um Abril, o que me comoveu. No dia seguinte, ao passar pela sua janela, vi que tinha posto um cravo numa jarra e o exibia em cima da cómoda. Tem chovido muito por aqui. Já não sinto o cheiro da madeira queimada.

Abraço,

A


Berlim, 30 de Agosto de 2005

Pergunto-me se ainda vives. Ainda vives?

Saudades,

B


Nova Orleães, 15 de Setembro de 2005

Queria escrever-te até esgotar a musicalidade das frases. Percorrer todos os sentidos de palavras como “cravo”, “liberdade” ou “utopia”. Mas a água inundou o papel e a caneta. As palavras já não são palavras, são desespero. Deixei de lhes sentir o sabor, de as saber. Ainda vivo, não sei como… e no meu barco já não cabem mais crianças naufragadas. Faço parte dos que nada têm, agora sei-o.

Abraço,

A

FIM

(escrito entre Julho e Dezembro de 2005)

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